Em Espiritismo
Dialético, José Herculano Pires compara os preceitos preconizados por
Marx e Engels no materialismo dialético à função do espiritismo como uma
doutrina também dialética capaz de revolucionar o mundo através da criação de
uma “consciência humanista”.
Herculano
Pires inicia seu texto explicando o materialismo dialético marxista e
identificando-o como um “pássaro de asas
quebradas que, apesar de bater com energia a asa que lhe sobrou intacta, não
consegue elevar-se além da poeira da terra”. Tal afirmativa deriva do fato
de que a elaboração da dialética moderna teria sido frustrada ao se escolher um
dos contrários como sendo o bom e o outro como sendo o mau. Neste caso
específico, o materialismo dialético teria escolhido bom somente o princípio material
em detrimento do espiritual.
Sendo a
dialética estabelecida pelo confrontamento entre os opostos, ao se excluir um
dos opostos, Marx e Engels teriam tomado a exclusão pela síntese.
Mesmo
apontando as falhas do materialismo dialético, José Herculano Pires
posiciona-se claramente como marxista ao longo de todo o texto, chegando a
afirmar que Marx e Engels teriam se tornado “credores de todos os que (...) desfrutam hoje da possibilidade de uma
caminhada mais rápida aos rumos da civilização socialista”.
O autor, no
entanto, alerta para o fato de que os marxistas de sua época (um século após
Marx) ainda persistiam no erro da “asa
quebrada”, não respeitando o processo próprio da dialética.
José
Herculano entra, então, no território daqueles que, alegando fazer ciência
preferem negar experimentações como as de Crookes e Richet a fim reafirmar sua
teoria materialista cuja “base se esvai aos olhos de todos, com a própria
evaporação da matéria, na era da física nuclear”.
As críticas
feitas por Engels em um artigo de 1898 no qual ele criticaria os trabalhos de
Crookes, Aksakoff e Zöllner é explicada por Herculano como sendo devido ao “espírito da época”. No entanto, a
utilização de tal artigo no século XX como única fonte daqueles que desejariam
negar a realidade dos fenômenos espíritas seria, segundo o autor, contrária ao
próprio exemplo de Engels no que diz respeito à experimentação própria.
Segundo
Engels, não seria possível menosprezar a dialética impunemente. Concordando com
ele, Herculano cita vários casos nos quais a dialética foi utilizada para
estabelecimento da verdade comprovando a teoria espiritualista. O autor cita
Charles Richet que mesmo após presenciar vários casos de materialização somente
teria se convencido da sobrevivência da alma após Ernesto Bozzano ter-lhe
demonstrado dialeticamente “a obscuridade
das teorias que atravancam a sua própria ciência”.
Cita também
Cesare Lombroso, criminologista e psiquiatra, crítico do espiritismo, que acabou
por aceitar a filosofia espírita após assistir pessoalmente a várias sessões de
materialização através da médium Eusápia Palladino, nas quais teria tido a
oportunidade de presenciar a materialização de sua própria mãe.
A intenção de
Herculano ao citar tais casos e confrontá-los com as teorias de autores contrários
à existência dos fenômenos espíritas é a de comprovar o total desprezo de tais
autores pela dialética.
Indo mais
profundamente na questão da dialética, Herculano expõe a interpretação materialista
e espiritualista do Homem. Para Marx o homem seria resultado “da ação simultânea do trabalho, sobre ele e a
natureza”. Ou seja, “agindo sobre o
meio em que vive, trabalhando-o, ele se modifica a si mesmo”. No
espiritismo, entretanto, essa visão seria ampliada pelo conceito de que o
princípio inteligente independeria do corpo. Tal visão tornaria o espiritismo
uma filosofia combatida tanto por religiosos como por materialistas.
O espiritismo
ao se apresentar como uma filosofia assentada na observação e na
experimentação, torna-se, por natureza, dialético. Revelando-se, dessa maneira,
como “o legitimo e natural herdeiro do
título a que se candidata o materialismo dialético: síntese do conhecimento”.
A ciência, a filosofia e a religião apareceriam, então, no espiritismo
encadeadas, uma resultando da outra, em um verdadeiro processo da mais pura
dialética, como afirma Herculano Pires:
“Partindo da observação e da análise dos
fenômenos materiais, de natureza supranormal, criamos a filosofia do ser, e
atingimos, logo a seguir, a religião”.
No entanto,
apesar de sua natural dialética, o espiritismo parece, segundo o autor, também
deformar-se, perdendo o seu equilíbrio e pendendo às vezes para um sectarismo e
misticismo de uma nova religião ou para a estrutura materialista de uma simples
observação metapsíquica, conforme explicita o autor.
A solução,
segundo Herculano, seria a compreensão dos princípios espíritas como doutrina
dialética capaz de ser aplicada a todos os ramos da ciência. Sua razão de ser seria a de indicar ao homem
o caminho seguro das transformações sociais. Para tanto, o autor defende uma
maior penetração da bibliografia espírita nas massas através “de compêndios culturais e manuais
populares”.
Herculano
Pires defende o ativismo espírita em detrimento da passividade de alguns
espíritas para os quais “a lei de causa e
efeito explica e resolve todas as coisas, cabendo-nos apenas compreendê-la e
aceitar passivamente sua ação”. A ideia de que a transformação deva ocorrer
primeiramente no homem para que a estrutura social se transforme é combatida
pelo autor como sendo um “equívoco de
fundo místico”.
O autor
defende que a renovação do homem somente implicará em renovação social se o
homem renovado se empenhar em transformar o meio em que vive, colocando,
inclusive, esta tarefa como sendo “a
indeclinável obrigação espírita”. A função do espiritismo, portanto, seria
a “renovação integral do homem, não
apenas do homem na sua expressão individual e transitória, mas na sua
permanente expressão coletiva”.
O
espiritismo, então, deveria encontrar sua própria maneira de agir diferentes
das utilizadas no religiosismo clássico e no materialismo dialético. Herculano
defende a idéia do estabelecimento de fundamentos sólidos e definidos do
espiritismo dialético.
O texto de
Herculano Pires é utilizado como prefácio da obra Dialética e Metapsíquica do filósofo argentino Humberto Mariotti
publicado em 1951 e reflete com clareza a força da idéia marxista vigente à
época em todos os campos do conhecimento acadêmico.
Como
filósofo, Herculano não poderia deixar de ter sofrido essa influência, assim
como o filósofo argentino Mariotti, sendo compreensível a utilização de termos
marxistas assim como a defesa da idéia de um mundo que caminharia
inevitavelmente para a consolidação do socialismo. Idéia esta que caiu por
terra junto com o muro de Berlim e fez ruir toda a concepção evolucionista de
modo de produção defendida por Marx.
É necessário
que se compreenda com clareza o posicionamento de Herculano e sua posição como
pensador do século XX altamente influenciado pelas idéias vigentes à época para
que não cometamos o erro de fazer uma leitura de seu texto de forma anacrônica.
Como o
próprio autor explicita, a dialética é anterior à Marx, e a defesa de um
espiritismo dialético aparece no texto de Herculano comparada ao materialismo
dialético de Marx por ser esta a filosofia com mais força na época, sendo, por
isso, o material mais próximo e mais atual para ser utilizado quando o texto
foi escrito.
Tal
posicionamento não diminui a contribuição de Herculano para um “pensar”
espírita diferenciado. O autor impele-nos para a ação acreditando que a atitude
espírita é o que será capaz de modificar o mundo. Tal modificação viria através
de uma consciência humanista decorrente de uma maior popularização da filosofia
espírita.
Uma análise
posterior à época de Herculano nos revela, entretanto, que a divulgação da
filosofia espírita se deu independente de uma organização de um movimento
coletivo espírita, mas através da reforma individual de alguns homens que agiram
de maneira a deixar a marca do espiritismo ou das idéias espiritualistas na
sociedade como um todo.
Esse foi o
caso de Chico Xavier, contemporâneo de Herculano Pires, que ao aparecer em um
programa de TV, Pinga Fogo, fez
crescer a curiosidade da população para com o espiritismo tornado-se, não
somente por este fato, mas em especial pela sua atitude de vida, o maior
divulgador espírita brasileiro.
Posterior a
ele, outras pessoas não tão conhecidas, também fizeram a sua parte contribuindo
na divulgação dessa filosofia que, como disse Herculano, seria capaz de criar a
consciência humanista na sociedade. A ponto de hoje, no Brasil, ser possível
assistir a novelas com tal temática ou mesmo se ter filmes produzidos por
grandes companhias baseado em obras espíritas.
A dialética
espírita, ou espiritismo dialético, no entanto, ainda se constitui como uma
necessidade a ser observada. A essência dialética do espiritismo não pode ser
deixada de lado, para que não incorramos no mesmo erro que cometeu a Igreja
Católica, ao longo de sua história, ao não permitir o confrontamento de ideias,
a contradição.
O espiritismo
foi codificado por Kardec a partir do método científico dedutivo, através da
observação e experimentação. No entanto, hoje é encarado somente como uma
doutrina a ser seguida pelos fiéis que aprenderam a ler sem analisar,
questionar, ou confrontar.
Herculano
Pires, mesmo quando analisando os fatos dentro da ótica de seu tempo, ainda
pode ser considerado extremamente atual.
José Herculano Pires (1915-1979),
jornalista, filósofo, tradutor e intelectual espírita brasileiro, foi autor de
obras sobre espiritismo, filosofia e parapsicologia.
(Texto Espiritismo Dialético foi prefácio da obra Dialética e Metapsíquica, do filósofo portenho Humberto Mariotti, originalmente publicada pela
Édipo – Edições Populares Ltda. em fevereiro de 1951. Republicado em livro por A Fagulha, de Campinas-SP, editora do
Movimento Universitário Espírita (MUE), em 1971.)
Resenha elaborada por Alessandra Mayhé
Apesar da complexidade do texto, aprendi mto com a abordagem cientifica feita por Jose Herculano Pires aa prefaciar a obra de Mariotti.
ResponderExcluirTambém comecei a ler um livro dele. Vou retomar a leitura. Achei bastante complexo mesmo.
Excluir~A função do espiritismo, portanto, seria a “renovação integral do homem, não apenas do homem na sua expressão individual e transitória, mas na sua permanente expressão coletiva”.~
ResponderExcluirJá leram O Espírito e O Tempo, dele também? Vou recomeçar a ler em breve. Fica aí a dica para uma resenha.